
O aroma que sai das cozinhas coloniais, a textura das mãos calejadas pelo trabalho e a religiosidade e nas histórias contadas — em talian, é claro. São essas características de certos lugares da serra gaúcha que, ao serem visitados, remetem à casa da nonna. Afinal, são lugares que fazem questão de manter vivas as tradições e a cultura dos imigrantes italianos, que há 150 anos chegaram ao Rio Grande do Sul. Uma união de experiências que contribuem também para o fortalecimento do turismo na região.
Conforme Beatriz Paulus, diretora executiva da Instância de Governança Regional do Turismo da Região Uva e Vinho (Atuaserra), o primeiro atrativo turístico da região foi o trem, em 1915, porém em uma zona de suíços alemães, o Desvio Blauth. Entretanto, em meados dos anos 1980, foi a influência da cultura italiana que contribuiu para o desenvolvimento turístico na região Uva e Vinho.
— A musicalidade, a gastronomia e a própria paisagem, que foi se assemelhando a uma paisagem mais italiana. Essas experiências, como a pisa da uva e as festas com comida farta, por exemplo, são elementos que mostram com clareza as características italianas, resultando em sucesso de público e posicionamento de mercado — diz.
Manter viva a memória dos imigrantes é também uma estratégia para impulsionar o turismo local. São experiências que, segundo Beatriz, podem ser resumidas como parte da imaterialidade da cultura italiana, pois, ao longo dos anos, reforça que a materialidade, aos poucos, foi se perdendo. Casas de pedra, casarões de madeira e antigos galpões agrícolas construídos pelos primeiros imigrantes são cada vez mais raros, vitimados pelo tempo ou pela própria modernidade. Portanto, resgatar e consolidar a imaterialidade cultural é um dos principais desafios.
— É a pessoa chegar aqui e degustar a comida colonial, sem ingredientes industrializados. É ver o artesanato produzido pelos próprios descendentes. Uma grande representatividade dessa cultura hoje em dia, por exemplo, são os filós de Vila Flores e Antônio Prado, que não competem entre si, mas se complementam no que dizem respeito aos elementos da história. Muitas coisas demandam ainda muita pesquisa e precisamos continuar pesquisando e ir encontrando os diferenciais da nossa região — afirma.
Além do trabalho árduo e da comida farta — depois da carência de alimentos na Itália — Beatriz também reforça como legado dos anteados a importância da presença marcante da mulher, da nonna que era a base da família. Além disso, a fé e a religiosidade, que acompanharam os descendentes ao longo das décadas.
Memórias afetivas à mesa

Cercada por parreirais e árvores frutíferas, na Estrada do Sabor, Linha São Jorge, no interior de Garibaldi, está a Osteria Della Colombina, comandada por Odete Bettú Lazzari, 75 anos. Neta de imigrantes oriundos de Cremona, na Itália, ela transformou o que muitos viam como “gringuice” em identidade e diferencial de negócio.
No ambiente do restaurante, no porão da casa, há mesas de madeira e chão batido. Nas paredes, um encontro com a história e com a religiosidade, através de objetos antigos, fotografias de família e imagens de santos. Na pequena e charmosa Osteria, a experiência é completa: o visitante conhece a história da família, eia pela propriedade, escuta causos antigos e, claro, prova pratos típicos, como polenta brustolada, carne lessa, nhoque e sopa de capeletti. Tudo acompanhado por licores, como o nozin e o limoncello, elaborados ali mesmo.
O cardápio, claro, é herança direta dos anteados. São pratos resgatados da memória afetiva da dona Odete. O aprendizado das tarefas do lar, ainda na infância, deu asas às primeiras colombinas — pombinhas feitas de massa de pão. E foi a curiosidade pela história da família que fez com que Odete criasse a Osteria, em 2001.
— Quando eu era criança, meu pai lia a história de Nanetto Pipetta, que contava em si a história dos imigrantes, e eu me apaixonei. Eu olhava as fotografias que tinham na minha casa e eu queria me aprofundar nas histórias daquelas imagens. À medida que eu fui crescendo, fui percebendo que ali mesmo, na minha casa, tínhamos os costumes dos imigrantes. Quando iniciei a Osteria, quis resgatar esse jeito de ser, além, claro, da comida típica — lembra.
Reconhecida entre os 100 melhores restaurantes do Brasil pela revista Exame Casual, a Osteria tornou-se um lugar onde as raízes do ado se tornam cada vez mais presentes. Os segredos, segundo Odete, são a sinceridade e a simplicidade. Valores que também foram transmitidos às quatro filhas — Rosângela, Raquel, Roselaine e Raísa — que hoje ajudam a mãe nos negócios.
— É ser autêntica nos afazeres e na fala. É apresentar e dar o melhor de si, começando pelo atendimento. As pessoas aqui são bem recebidas e buscamos deixar claro que ficamos felizes por elas estarem aqui. E os clientes sentem isso quando vamos de mesa em mesa conversar com eles e conhecer cada história — destaca Odete.
A arte e a espiritualidade no barro

Foi no trato com o barro através das peças decorativas de arte em cerâmica que a família Ceccato encontrou, além do sustento, a alegria do trabalho diário. É no ateliê L’arte Ceccato, em Vila Flores, que Benedita Zandoná Ceccato, 76, alia a prática que herdou dos anteados à religiosidade. O barro, que no ado servia para levantar casas, hoje dá vida a esculturas de São Francisco de Assis e outras obras cheias de simbolismo.
Os bisavós de Benedita vieram da região do Vêneto, no norte da Itália, em busca da riqueza, fortuna e bem-estar, a chamada "la cucagna", como ela mesma diz. Seu bisavô morreu durante a longa viagem de navio, sendo jogado ao mar. Sua bisavó chegou ao Brasil com cinco filhos, sem marido e sem roupas, pois até as bagagens havia perdido. Pela família do marido de Benedita, Jacir Izeu Ceccato, 75, foi o bisavô e o avô que partiram da Itália rumo ao Brasil. As terras destinadas à família são as mesmas onde hoje está o ateliê, porém, bem diferentes daquela época em que eram cobertas por matas.
A história da família com o artesanato surgiu com a primeira casa construída pelos imigrantes para morar e começar a desbravar o território. Na primeira chuva, a casa ruiu, pois havia sido construída sobre uma jazida de barro cerâmico. Descobriram ali uma oportunidade.
— Tudo começou pela necessidade. Então, os primeiros objetos feitos com barro foram os tijolos. Depois, começaram a produzir vasos e outros utensílios que seriam importantes — conta Jacir.
Com o ar dos anos, Benedita ou a se dedicar ao artesanato. A prática, segundo ela, envolve os quatro elementos da natureza: terra, fogo, água e ar, que combinados, dão a perfeita harmonia às suas peças.
E não é somente no artesanato que a família preserva às raízes dos anteados italianos. Benedita, o marido e a filha Makielen, além de serem uns dos fundadores, participam ativamente do tradicional filó de Vila Flores. Para os turistas, esse momento é uma oportunidade de vivenciar a cultura e a saga do imigrante italiano.
— O legado que os imigrantes deixaram não ficou só nos livros. No dia a dia, nós, aqui em Vila Flores, procuramos sempre essa vivência com os anteados. Eram pessoas simples, que tinham criatividade e que sempre procuravam a solução dos problemas. É o legado que estamos levando adiante — diz a artista Benedita.
O ateliê existe há cerca de 20 anos. Além dele, a propriedade abriga espaços únicos como as mandalas curativas do corpo e da alma, o relógio de ervas medicinais e a chamada terapia caminhante — uma trilha entre a mata, onde o turista escuta histórias de família e da comunidade. É um lugar que mistura arte, natureza e espiritualidade.
— O uso de chás e ervas medicinais pelos anteados surgiu após eles aprenderem as técnicas com os bugres e os indígenas que avam por aqui. Então, a fé, junto com o poder das ervas, curava as pessoas, pois se dizia no ado que uma xícara de água quente, uma erva medicinal e uma pitada de fé, não tinha doença que resistisse. Esses ensinamentos nós continuamos transmitindo às pessoas que visitam o ateliê — conta Benedita.
Para Makielen, filha de Benedita e Jacir, além dos exemplos de fé e coragem, seus anteados deixaram um legado ainda maior: o respeito ao tempo.
— Eles consideravam o tempo um verdadeiro Deus. O tempo de plantar, de esperar, de colher. Trabalhar com fé, força, determinação, mas também descansar, cuidar da família, fazer festas, celebrar. É como diz a frase italiana “Quando il nonno non racconta, il nipote non ascolta, si rompe la vita”, ou seja, se os avós não contam histórias e se os netos não escutam, se rompe o ciclo da vida. Nós somos a história viva da família, e não deixamos morrer o fio invisível que liga as gerações através dessa história. E a nossa continua viva porque nós contamos e compartilhamos — finaliza.
O aconchego no Vale dos Vinhedos

As paisagens de plátanos e videiras do Vale dos Vinhedos são um convite à contemplação. Nesse cenário está situada a pousada Ca’di Valle, um refúgio que acolhe visitantes como se estivessem numa casa de família. Fundada em 2004 pelo casal Jandir, 79, e Vilma Crestani, 74, hoje é também istrada pelo filho Tiago, 37.
A família Crestani busca manter a tradição viva através das histórias contadas que am de geração em geração, da religiosidade e da pequena produção artesanal de sucos de uva, geleias e pães.
Foi o avô e o pai de seu Jandir — Antônio e Massimiliano — que partiram de Maróstica, na província de Vicenza, na Itália, rumo ao Brasil. Se estabeleceram primeiramente em Garibaldi e, depois, em Bento Gonçalves, no lugar onde hoje está a pousada. Fotos dos anteados estão espalhadas pela casa.
— Aqui eles começaram a construir, plantar as parreiras, o trigo e o milho para alimentar a família. Aqui recomeçaram a vida — recorda Jandir.
A casa onde Jandir começou a pousada foi herança do pai e se transformou no sustento da família. Antes de investir no empreendimento, Jandir teve dois aviários e trabalhou numa transportadora e também na colônia, junto com a esposa.
Com apenas quatro quartos, a pousada oferece atendimento familiar, longas conversas, café da manhã colonial e muita tranquilidade. E essa é a proposta: estar perto e conhecer o visitante.
— Nós não temos clientes, nós temos amigos. O pessoal toma café da manhã ouvindo as histórias da minha mãe e saem maravilhados. A pousada é simples, não tem nenhum requinte, não tem nada de luxuoso, mas tem conforto. E o nosso objetivo é proporcionar essa imersão na cultura e nas tradições italianas — explica Tiago.
Atualmente istrando a pousada, Tiago reforça a importância de deixar vivo o legado e às marcas da sua família, que vão além da força de trabalho e da persistência. As conversas com os clientes — ou amigos, como ele diz — são em talian, o idioma que aprendeu com seu pai.
— O pessoal que vem de fora gosta muito disso. Não entendem, mas são curiosos e pedem pra gente falar (em talian) e traduzir o se falou. E isso encanta e cria raízes. Aqui o que atrai é essa experiência de imersão na cultura — releva.
E é em talian que seu Jandir resume a jornada dos imigrantes.
— La storia del talian la è sofrida, ma è bella (a história dos imigrantes italianos foi sofrida, mas é bela).